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quarta-feira, 1 de setembro de 2010

MÊS DA BIBLÍA 2010 -TEXTO BASE

Jonas: Conversão e missão – Levanta-te e vai à grande cidade (Jn 1,2)

Quem nunca ouviu falar no profeta Jonas que foi engolido por um grande peixe? Mas seria esse episódio o que há de mais importante nesse livro bíblico? Em que esse fato seria relevante para a fé dos judeus e para fé cristã hoje? As respostas a estas perguntas dependem de um estudo atento do texto bíblico dentro de seu contexto histórico, somente assim é possível descobrir traços que indiquem o perfil de quem o escreveu, a época de seu surgimento e, seus destinatários imediatos. Com esses dados, a mensagem de Jonas se mostrará atual para o século XXI.

1. O Autor

Numa leitura superficial do texto bíblico, o leitor contemporâneo pode cometer o equívoco de pensar que o autor desse livro tenha sido um profeta nacionalista de Israel do Norte, chamado Jonas, filho de Amitai, que viveu durante o reinado de Jeroboão II, por volta de 790-750 a.C., mencionado em 2Rs 14,25 e em Jn 1,1. Não é raro encontrar leituras fundamentalistas da Bíblia que tendem a concluir que o autor do livro de Jonas tenha sido aquele profeta do século VIII a.C.

Alguns aspectos do livro de Jonas, contudo, nos levam a concluir que a obra não poderia ter sido escrita no tempo de Jeroboão II, como veremos a seguir. Mas, se o livro não é do século VIII a.C. e se o autor não é o profeta Jonas, por que o texto se inicia com a seguinte indicação: “Veio à palavra do Senhor a Jonas, filho de Amitai...” (Jn 1,1)?

O autor usa um recurso literário chamado de pseudonímia. Ele não está interessado em destacar a autoria do livro, nem em focalizar sua identidade. Isso era muito comum naquela cultura. Os autores dos livros bíblicos geralmente não assinam suas obras porque acreditam que estão apenas representando a fé e a experiência de um povo do qual são membros, ou seja, eles não falam em nome próprio e com seus escritos querem apenas trazer os filhos de Israel de volta para a aliança firmada com Deus.

O autor do livro permanece anônimo e usa como pseudônimo o antigo profeta Jonas, filho de Amitai, porque esse recurso o ajuda a divulgar melhor sua mensagem. Não sabemos quem escreveu o livro de Jonas, mas podemos fazer um perfil de sua personalidade a partir do texto bíblico. É alguém com mente aberta, como diríamos hoje, para ele todas as pessoas são alvos do amor e da misericórdia de Deus. É uma pessoa bem humorada que usa o recurso da ironia para convencer os judeus nacionalistas de sua época da inconsistência da postura exclusivista que considerava apenas o judeu como merecedor do amor de Deus.

2. A época

Para ter uma idéia sobre a época em que esse livro foi escrito, alguns aspectos devem ser considerados. Em primeiro lugar não é possível que seja do século VIII a.C., quando viveu o profeta nacionalista Jonas filho de Amitai, pois o texto hebraico emprega expressões conhecidas só muito tempo depois do reinado de Jeroboão II. Afirmar que o livro de Jonas foi escrito no século VIII a.C. seria algo semelhante a dizer que um dos modernos escritores brasileiros teria vivido no tempo de Dom João VI. O hebraico sofreu modificações ao longo da história, como acontece a qualquer idioma.

Outro aspecto a ser levado em conta é que o livro de Jonas contém expressões em aramaico, idioma oficial dos judeus durante o domínio persa (538-333 a.C.), mas que não era falado por eles antes do exílio da Babilônia (587-538 a.C.). Portanto, o livro tem que ser posterior ao século VI a.C.

Em Jn 1,9 encontra-se a expressão “Deus dos céus que fez o mar e a terra”. Isso indica um período tardio da teologia de Israel. Em épocas mais antigas era comum falar no Deus libertador, destacando as características de guerreiro, que fez aliança com Israel considerado seu único povo dentre todas as nações.

Esses e outros aspectos levam à conclusão que o livro de Jonas foi escrito após o período de Esdras e Neemias quando a maioria dos judeus, depois de sofrer a dominação de vários impérios estrangeiros, havia desenvolvido forte espírito de exclusivismo e de particularismo e não queria uma aproximação com outros povos e muito menos exercer a vocação missionária de fazer o Deus de Israel ser conhecido e amado pelas demais nações.

Como o livro de Jonas faz parte do bloco dos doze profetas, mencionado em Eclo (Sir) 49,10-12, ele não pode ter sido escrito depois do ano 170 a.C, possível época do surgimento do Eclesiástico. Por isso a maioria dos estudiosos está de acordo que o livro de Jonas data provavelmente do final do século V a.C, ou início do século IV a.C.

3. A obra

O autor do livro de Jonas, unindo o recurso da pseudonímia ao da ironia, escreve um conto edificante que termina com uma lição dada por Deus ao protagonista. O conto edificante é um gênero literário muito conhecido entre os mestres judeus e, nesse caso específico, podemos classificá-lo como um midraxe hagadá, ou seja, uma narrativa que interpreta um texto bíblico à luz de um contexto histórico posterior.

O autor do livro de Jonas, ao ler 2Rs 14,25s quatro séculos depois, se pergunta como o Deus de Israel poderia conceder uma profecia de coisas boas para o Reino do Norte no tempo de Jeroboão II se o povo daquela época era desleal e tinha um rei que persistia em todos os pecados dos seus antecessores. A teologia que estava em voga, no tempo em que 2Rs foi escrito, considerava o relacionamento de Deus com o ser humano regido pela bipolaridade justiça-bênção e injustiça-castigo. Nessa visão mecanicista da vida e das relações se supunha que as ações humanas desencadeariam bem estar geral ou má sorte, conforme agradasse ou desagradasse a Deus. Era pensar comum que o futuro do ser humano dependeria da submissão a essa ordem da qual nem Deus poderia fugir. Esse tipo de pensamento foi nomeado pelos estudiosos como Teologia da Retribuição, o melhor seria designá-la por ideologia da retribuição.

Sendo assim, como é possível que a passagem de 2Rs 14,25s, marcada pelas concepções de retribuição, poderia relatar uma profecia de prosperidade para um reino infiel à aliança com Deus? Se tal era possível ao Reino de Israel não seria possível às demais nações? Então o autor do livro de Jonas pensa em usar aquele profeta nacionalista de quatro séculos atrás para profetizar a misericórdia de Deus aos inimigos que haviam destruído Samaria, capital de Israel, em 722 a.C. Não podemos deixar de perceber a ironia contida aqui: o Jonas histórico (2Rs 14,25) profetiza a prosperidade e a expansão do Reino do Norte e o Jonas personagem do conto edificante tem que profetizar a favor dos habitantes da cidade de Nínive destruidores de Samaria, capital do reino do Norte.

A ironia também está presente no significado do nome do protagonista. Jonas em hebraico é Yonah e significa “pomba”, ave conhecida como símbolo da paz e das boas relações entre Deus e o ser humano, haja vista a pomba com o ramo de oliveira como sinal do fim do dilúvio. O profeta Oséias comparou com uma pomba os deportados de Israel do Norte para a Assíria quando assegurou que Deus os traria de volta apesar da inclinação deles a desviar-se da palavra do Senhor (Os 11,7-11). A palavra Yonah, além disso, deriva da raiz do verbo Yanah que significa chorar, reclamar, lamentar. Então o nosso protagonista Jonas deveria ser sinal de paz, mas se mostra como uma pessoa intransigente que reclama de tudo ao longo da narrativa, com nítida inclinação para a desobediência à palavra de Deus.

Ao ser questionado sobre sua identidade, Jonas afirma que é hebreu e adora o Deus criador do mar e da terra. A fé no Deus criador traz como conseqüência o reconhecimento de seu amor por todos os povos. Dessa maneira, Jonas afirmou que a autoridade de seu Deus não está limitada a um território determinado, mas tinha domínio universal. Com isso se vê a ironia da situação de Jonas: crer que Deus domina sobre o mar e a terra e, ao mesmo tempo, está fugindo de sua presença.

Os termos Israel, profeta e profecia não aparecem nem uma vez no livro de Jonas. Isso mostra que não se trata de um de um livro profético. E qual contexto histórico estaria sendo interpretado nesse bem humorado conto? A pista nos é dada no final do livro, na lição que Jonas é forçado a receber: a misericórdia de Deus está sobre todos os povos e sobre toda criatura. Se a maioria das pessoas não sabe disso é porque falta quem lhes anuncie essa boa-notícia. O autor do livro de Jonas viveu em uma época marcada por reformas radicais nacionalistas desde Esdras e Neemias, basta conferir os capítulos nove e dez do livro de Esdras e a ordem para que os judeus se divorciassem das esposas estrangeiras e expulsassem os filhos nascidos desses casamentos mistos. Veja também Ne 13,23–28.

Ao lado dessa tendência nacionalista exacerbada caminhava uma tendência universalista que considerava o estrangeiro como filho de Deus. Defensores dessa tendência são os textos de Is 40–55 e o livro de Rute, entre outros. O autor do livro de Jonas empresta sua voz à teologia universalista para defender o direito de Deus amar a todos, sem fazer acepção de pessoa. Para criticar a tendência nacionalista o autor faz o personagem Jonas preferir morrer a aceitar o amor de Deus para com os estrangeiros. Na linguagem de hoje diríamos que o livro de Jonas foi escrito para animar os judeus a assumir sua responsabilidade missionária para com as outras nações, nesse sentido, esse escrito é um precursor do mandato missionário do evangelho.

4. Evangelizar é preciso, converter-se é urgente

O livro se inicia como muitos livros proféticos afirmando que a palavra de Deus veio a... (Os 1,1; Jl 1,1; Mq 1,1; Sf 1,1; Ag 1,1; Zc 1,1). Com isso se estabelece um convite ao leitor para se identificar com o protagonista e se tornar um canal para que a palavra de Deus chegue a todos os povos. Lendo o livro atentamente se chega à conclusão que Deus é diretor do drama, ele está no controle de tudo, está determinado a fazer sua misericórdia chegar aos ninivitas. Ele prepara (em hebraico, manah) um peixe (2,1), uma mamoneira (4,6), um verme (4,7), um vento oriental (4,8). E Jonas não consegue mudar o roteiro ou projeto divino. Deus começa e termina o livro, a sua palavra é soberana e não volta a ele sem que se torne efetiva e produza o fruto almejado (Is 55, 11).

A missão de Jonas é precisa: tem que anunciar aos habitantes da grande cidade de Nínive que sua iniqüidade subiu até Deus. Isso consiste numa parusia conforme se procedia em antigos reinos. O termo grego parusia significava a visita do rei a uma região distante da sede do governo para resolver certos problemas administrativos como o abuso de autoridade dos governantes e a prática da iniqüidade por parte destes. O aviso de que o rei está sabendo da iniqüidade, dava tempo aos culpados para mudar de conduta como também deixava os oprimidos cheios de esperança que o rei lhes fizesse justiça. Nesse sentido, o que Jonas deve anunciar é a parusia do verdadeiro rei do universo sobre um vassalo, o rei de Nínive. De nenhuma forma se trata de um veredicto definitivo do juiz, mas de um aviso para que haja oportunidade de mudança de atitude por parte dos que estão praticando o erro. Não é uma condenação, mas uma boa-notícia o que Jonas deve anunciar.

O mandato missionário consiste em três imperativos: levanta-te, vai, proclama (Jn 1,2; 3,2). O termo chave é o verbo hebraico qara' que significa proclamar ou gritar. Esse termo aparece sete vezes nesse livro: três vezes se diz qara' (proclama) a Nínive; três vezes se diz qara' (clama) a Deus e uma vez se afirma qara' (proclama) um jejum. A proclamação do jejum faz a ligação entre proclamar a Nínive e clamar a Deus. O mesmo termo aparece no salmo do capítulo dois (Jn 2,3), mas trata-se de um acréscimo bem posterior.

Apesar de não haver, em nenhuma parte do livro de Jonas, uma palavra vinda de Deus para condenar Nínive, é isto que o missionário anuncia: “Dentro de quarenta dias Nínive será destruída!” (Jn 3,4). Por que o missionário diria isso se a palavra de Deus foi outra (Jn 1,2)? Ora, segundo a ideologia da retribuição, se Deus sabia da iniqüidade de Nínive deduzia-se que ele a destruiria como castigo pelos pecados. O termo hebraico haphak significa a total destruição de uma cidade e é usada na Bíblia somente para se referir a Sodoma e a Gomorra (Gn 19,29). Jonas anunciou uma conseqüência lógica de suas concepções teológicas. Por esse motivo o livro de Jonas chama à conversão, não apenas os ouvintes, mas primeiramente o missionário.

De fato, Jonas é, de todos os personagens desse livro, o que mais precisa de conversão. Ele pode ser definido como o desobediente. Aos três imperativos da missão (levanta-te, vai, proclama, Jn 1,2; 3,2) Jonas age em sentido contrário: desce (1,3), foge (1,3), dorme (1,5). Os estrangeiros, tanto os marinheiros quanto os ninivitas, foram mais religiosos, e até o mar, o peixe, a planta, o verme, o vento oriental, todos submetem-se à vontade de Deus. Jonas, ao contrário, mesmo quando parece ser obediente não o é de fato, pois anuncia a mensagem em apenas um dia, quando se levaria três dias para atravessar a cidade. E proclama um conteúdo diferente daquele que lhe foi indicado.

Apesar de tudo os ninivitas creram em Deus (Jn 3,5), o termo hebraico usado é 'aman, o mesmo usado para descrever a fé de Abraão (Gn 15,6), isso significa que eles depositaram toda a sua confiança em Deus, mesmo tendo recebido uma mensagem de condenação. O que não fariam, então, se tivessem recebido a boa-nova? Também os marinheiros estrangeiros adoraram o Deus de Israel (Jn 1,14-17), apesar de Jonas ter preferido ser lançado ao mar que falar-lhes sobre a misericórdia do Senhor. O grande problema do livro de Jonas, a maior dificuldade é a conversão do missionário e não a dos iníquos e dos idólatras.

A conversão dos ninivitas começou com o povo e depois chegou ao rei, o qual expediu um decreto de penitência geral, incluindo também os animais (Jt 4,9-10) para mostrar que a criação inteira é afetada pelos nossos pecados. A reação do rei de Nínive foi muito distinta do procedimento dos reis de Israel que poucas vezes consideraram a exortação dos profetas. Assim como os marinheiros, o rei confiou na misericórdia de Deus, mesmo sem que Jonas a mencionasse em nenhum momento. E Jonas sabia que Deus é misericordioso, isso faz parte da fé de Israel (Ex 34,6).

Para demonstrar seu arrependimento sincero os ninivitas se uniram, desde os da mais alta classe social até os mais humildes, na busca da misericórdia de Deus. Para mostrar isso empregaram os símbolos da época: fizeram um jejum e vestiram-se de panos de saco (Jn 3,5). Esse costume era empregado em momentos de tristeza (2Sm 3,31; Jr 6,26), de luto (Est 4, 1-3), de arrependimento (Ne 9,1; Jó 42,6) e de humilhação (Dn 9,3-5).

Esses gestos externos eram expressões de uma mudança radical de atitude. Cada um deveria deixar o seu mau caminho (Jn 3,8-10), ou seja, o estilo de vida caracterizado pelo pecado e pela violência. O verbo arrepender-se, em hebraico shuv, significa uma mudança radical, uma volta de 180 graus. Consiste em deixar um estilo de vida fundado na iniqüidade por uma vida nova com perspectivas totalmente diferentes.

Mas a resposta de Deus à conversão dos ninivitas desagradou totalmente a Jonas, deixando-o profundamente irritado. Isto o fez revelar o objetivo da tentativa de fuga; não fora por medo da violência dos ninivitas nem por receio do desconhecido, como poderíamos supor. Para surpresa do leitor, Jonas diz que fugiu porque Deus é misericordioso, lento para a cólera e não faria mal a Nínive (Jn 4,2). Jonas não queria ser mensageiro de Deus porque assim evitaria que os ninivitas usufruíssem da misericórdia divina. Mas já que não conseguiu fugir dessa tarefa, agora preferia morrer a ver a salvação daqueles que considerava ímpios.

À revelia disso, o Senhor do céu e da terra ama a totalidade da criação. Essa é uma afirmação revolucionária para a maioria dos judeus contemporâneos do autor do livro de Jonas, pois se o Deus de Israel cuida de todos os seres, povos e nações, qual o lugar de Israel como povo da aliança? Hoje diríamos: qual o privilégio de ser cristão, se Deus ama os ateus, os membros de outras religiões e até mesmo aqueles que maculam sua imagem com o ódio? Isso significa que o povo de Deus deve investir na salvação dos iníquos e não na destruição deles. Os opressores, os violentos, os ímpios conhecerão a misericórdia e a redenção que vem de Deus através dos missionários de boas notícias.

O livro de Jonas termina bruscamente como é próprio desse gênero literário. Com isso permite ao leitor de cada geração fazer uma autocrítica e responder à pergunta do Senhor, confrontando-se com as atitudes de Jonas, dos marinheiros e dos ninivitas. Quem nunca desejou o desaparecimento definitivo do opressor ou do malvado? Quem se sente confortável em saber que “a misericórdia triunfa sobre o julgamento” (Tg 2,13)? O amor e a misericórdia de Deus se estendem a cada pessoa e deseja a conversão de todos.

O final do livro mostra o contraste entre Jonas e Deus: um deseja a morte, o outro, a vida; um quer a destruição, o outro, a salvação. O livro inteiro é uma exortação à conversão e à misericórdia, ambas são indesejáveis a Jonas e ele necessita das duas. O livro desafia o cristão atual, herdeiro da vocação de Israel, a deixar-se corrigir pela Palavra inspirada, santa e perfeita, útil para exortar e para “discernir os propósitos do coração” (Hb 4,12).

FONTE:CNBB